domingo, 6 de março de 2011

A Cidadania e o Trabalho Infantil

Novamente trago reflexões sobre o trabalho infantil, uma vez que se torna frequente nossa sociedade fechar os olhos para esta questão social que envolve nossas crianças e adolescentes.
Antes de abordar o fato em si, gostaria de lembrar que a origem da palavra infância vem do latim “infante”, e infante é aquele que não pode falar, aquele que é privado da fala.
Ou seja, não é casual que numa guerra, a infantaria era aquilo que ia à frente, sendo massacrada, enquanto a cavalaria se protegia atrás para um ataque posterior.
Um infante é aquele que é calado, não pode falar, é aquele que está impossibilitado de dizer, e de dizer-se. Portanto é aquele que não tem voz.
Desse ponto de vista, no Brasil, a palavra infância cabe muito bem na sua etimologia, porque uma parte deles não tem voz. Uma parte deles não pode se dizer, e uma parte deles não pode se completar como criança.
Por isso, a noção de infância é diferente da noção de criança. A noção de criança é aquele que vai sendo criado; é aquele que está na criação e portanto vai ter uma existência.
Se nós partirmos dessa perspectiva, é preciso que educadores e educadoras consigam assomar a voz das crianças, fazer com que elas venham à tona. Não é só dar voz à criança, mas permitir que se crie condições de ela se dizer.
Como ela não é ouvida, ela não faz falta, e não fazendo falta, ela é invisibilizada. Então, além de emudecida, ela é privada de visão, ela não é olhada; aliás é uma visão muito pouco aprazível, especialmente aquelas que estão na rua e na exclusão social.
Elas são atrapalhadoras da nossa paisagem, o que nos leva, não a uma visão de ótica, mas a uma ilusão de ética, porque elas estão ali naquele nosso mesmo circuito.
Aqueles que não são enxergados, não o são não por serem de fato desejosos serem invisíveis, mas porque são invisibilizados por aqueles que teriam que dar a eles visibilidade.
Faz parte da responsabilidade social a atenção aos que são invisibilizados e emudecidos. De maneira geral, as pessoas não prestam atenção. E esse não prestar atenção não é simbólico, ele é prático.
A questão do trabalho infantil não é só do Brasil, mas faz parte da história da humanidade em diversas regiões do mundo.
Durante muito tempo, o trabalho infantil no país tem sido tratado ora como consequência da pobreza, ora como solução para amenizar seus efeitos. A sociedade concordava ou aceitava que o ideal para as crianças e adolescentes das camadas sociais menos favorecidas seria aprender uma profissão o quanto antes, de modo a contribuir para a renda familiar e evitar a possibilidade de ingresso na marginalidade.
Porém, a partir da década de 80, ao surgir um movimento social em favor dos direitos das crianças e dos adolescentes, esse quadro começou a mudar. A promulgação da Constituição Federal de 1988 e a aprovação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); os suportes técnico e financeiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), somados aos programas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) a partir de 1992, acabaram por incluir definitivamente o tema do combate ao trabalho infantil na agenda nacional de políticas sociais e econômicas.
Para algumas pessoas, o conceito de trabalho infantil ainda possui uma relação estritamente financeira. A criança vai trabalhar porque a família é pobre. Para outras pessoas não, trata-se realmente de um conceito que vai além dessa questão monetária.
Há uma lógica na formação mais antiga de que uma criança precisa aprender a trabalhar desde pequena para que ela possa aprender o valor das coisas, uma noção processual da constituição, do ganho.
Aqui há uma diferenciação de trabalho e ocupação. O atual trabalho infantil é uma ocupação precoce, e muita gente prefere que elas tenham uma ocupação para não ficarem desocupadas.
Dizer “você vai sair para ganhar o seu próprio dinheiro porque isso é importante” o será se ele não for em detrimento das condições para crescer mais adiante. E esta infância não poder ser furtada do seu tempo.
Esse tempo de infância é um tempo de construção de estruturas, de condições de base orgânica, intelectual, reprodutiva. Aprender a trabalhar durante a infância é aprender a operar coisas, a cuidar do quarto, cuidar da roupa, cuidar do alimento, cuidar da louça, aprender a ter ações que sejam responsáveis, produtivas e importantes na sua formação.
Uma criança, por exemplo, que auxilia no corte da cana, cortando ao menos 4 toneladas no dia para ajudar a produtividade do pai e da mãe, ela não está aprendendo a trabalhar, ela está sendo sequestrada no seu modo de vida e de felicidade.
Quando o Poder Público junto com a sociedade civil enxerga a possibilidade de substituir o ganho da criança por uma proteção social, a família fica liberada de colocar a criança naquela condição.
Uma criança que tem uma ocupação fora, ela perde um tempo de maturação e de ludicidade. O lúdico é básico na formação de uma criança e de um adolescente. Aprender a brincar, conviver o leva à cooperação, ao aprendizado dos códigos, ao modo de convivência, a presença da etiqueta, que é a pequena ética, a tudo aquilo que faz com que a criança conviva melhor.
Por outro lado, com a ocupação, ela perde também a compreensão de uma vida na qual a alegria caiba sem a responsabilidade do retorno do obrigatório. Sem que ela tenha que ter uma devolutiva cotidiana.
Uma criança que vai para uma ocupação na rua, na colheita, na roça, ela é avaliada todos os dias. Nenhum de nós gosta de prova todo dia. Tanto que, todas as vezes que você imagina que na escola você poderia ter prova diariamente, a escola seria insuportável.
Uma criança que se ocupa na rua, vendendo produtos como atividade marginal, ela é avaliada diariamente: Quanto vendeu? Por que vendeu? Por que não vendeu? Hoje você não cumpriu!
Portanto isso tem um peso que pode gerar uma amargura muito grande. Crianças felizes se tornam, em parte, adultos melhores. Crianças felizes não são aquelas que não trabalham. Crianças felizes são aquelas para as quais não recebem uma cobrança contínua.
A questão do trabalho infantil se torna tão banalizada que acaba numa apatia moral. Apatia moral é uma justificativa para uma acomodação e para uma inação.
De maneira geral, as pessoas se postam diante de um aparelho de TV às 8:30h da noite, e ao verem a miséria, a indignação, ao verem a falta de emprego, ao verem crianças trabalhando, elas se levantam e bradam durante alguns segundos: “Que horror! Alguém tem que fazer alguma coisa” No dia seguinte o fazem de novo, e no outro também.
O nome disso é revolta. É diferente de um comportamento revolucionário. Há uma diferença entre revolta e revolução.
Revolta é você ficar indignado e voltar a sentar onde estava.
Revolução é você, tendo ficado indignado, transformar sua indignação num ato que cesse o ato violento que te indignou. Isso é revolução.
Há pessoas que fazem revolução na educação; há empresas nas suas fundações que fazem uma revolução na vida das pessoas. Outros só produzem revolta.
Atualmente, nós estamos nos habituando a ideia de normal quando ele é apenas frequente. A gente não pode confundir natural com normal e com comum.
Natural é aquilo que é da natureza. Normal é o que está na norma e comum é o frequente. Crianças na rua e no lixo não é natural. No lixo é natural outras espécies de animais, nós não.
Não é normal também; não está na norma, ao contrário; mas é comum. E aí vem a esperança, porque se fosse natural, seria difícil a gente lutar contra a natureza. Se fosse normal, teríamos que enfrentar a norma.
Ma sendo uma questão de frequência, é uma questão de diminuir essa frequência. Portanto não é algo impossível de ser ultrapassado. Isso signifca uma questão de consciência e cidadania.

Um comentário:

  1. Luiz, que bela reflexão...profunda, esclarecedora e instigadora...

    Essa questão que vc levantou sobre "revolta" x "revolução" foi sensacional...

    Parabéns...a cada post fico mais fã de seu blog.

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